terça-feira, 19 de abril de 2011

FHC nunca teve perspectiva nacional

O ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira acaba de eliminar seu último vínculo com a política institucional: declarou-se desligado do PSDB — que, segundo ele, caminhou de forma definitiva para a direita ideológica. O desligamento partidário marca também o retorno do intelectual à sua origem desenvolvimentista.

Em entrevista a Maria Inês Nassif, do Valor Econômico, Bresser-Pereira admite que não escapou à sedução do neoliberalismo, nos anos 90. Mas define uma diferença de origem entre ele e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como intelectuais: o nacionalismo. Segundo o ex-ministro, a teoria da dependência associada, de Fernando Henrique, caiu como uma luva para a esquerda americana — não por intenção do autor mas por conveniência do “império”.

No governo, FHC não se contradisse: a teoria da dependência associada pregava o crescimento do país com capital externo. O caráter não nacionalista dos governos tucanos era absolutamente compatível com a teoria da dependência associada do intelectual Fernando Henrique.

Nota do Participação Total:
A entrevista está disponível no blog da Dilma, mas a copiamos aqui para garantir a acessibilidade (lá, as letras são muito miúdas).


Valor: O senhor está onde sempre esteve?
Luiz Carlos Bresser-Pereira: No governo Fernando Henrique, ou nos anos 90, a hegemonia neoliberal foi muito violenta. Foi tão violenta que também atingiu a mim. Não escapei dela. Logo que saí do governo, publiquei um livro chamado A Crise do Estado. Aí, resolvi publicá-lo em inglês e revi o livro todo, de forma que, quatro anos depois, ele foi publicado em inglês.

Quando isso aconteceu, já estava entusiasmado com a vitória do Fernando Henrique e influenciado pelas ideias liberais. Não tinha me tornado um neoliberal de forma nenhuma, tenho certeza disso — mas estava mais perto do neoliberalismo do que estou hoje.

Valor: Caiu no conto da globalização?
Bresser-Pereira: Um pouco. Não totalmente, mas ninguém é de ferro. O grande problema da social-democracia é que ela se deixou influenciar, no mundo inteiro. A Terceira Via, por exemplo, hoje tão criticada, tinha um grande intelectual como Anthony Giddens por trás dela, um homem de centro-esquerda. Foi nesse estado de espírito que entrei no governo Fernando Henrique.

Mas também foi lá que tomei um susto. Eu estava fazendo a reforma gerencial, que era uma reforma essencialmente para fortalecer o Estado social, pois era a reforma dos serviços sociais e científicos do Estado. Mas fiquei surpreso com duas coisas dentro do governo: uma, que não havia nenhuma perspectiva nacional, não havia nenhuma distinção entre empresa nacional e estrangeira.

Muito pelo contrário: Fernando Henrique dizia forte e firmemente que não havia essa diferença, que era tudo rigorosamente igual — e isso é bobagem, é coisa que os americanos e europeus contam para nós, mas nunca praticaram. Aquilo me deixava muito incomodado. E a outra coisa que me deixou muito incomodado foi a política econômica.

Valor: Do ponto de vista acadêmico, o senhor não se considera da mesma escola que Fernando Henrique?
Bresser-Pereira: Fui dar uma aula em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e aí o Afrânio Garcia, um antropólogo que substituiu Ignacy Sachs na direção de um centro sobre o Brasil, e mais um cientista político do Rio Grande do Sul, o Hélgio Trindade, fizeram comigo uma entrevista para uma pesquisa, em outubro de 2003. Num certo momento, disse a eles: “Não sou da escola de sociologia de São Paulo, sou da escola do Iseb”. O Afrânio disse: “O quê?”. Era uma surpresa para ele.

Eu me formei a partir do pensamento do Celso Furtado, do Inácio Rangel — o Celso Furtado não foi do Iseb, mas era da Cepal, e a Cepal cepalina era estruturalista, como o Iseb. É claro que fiquei amigo da escola de sociologia de São Paulo, a escola do Florestan Fernandes e do Fernando Henrique, que vai dar na teoria da dependência, mas não tenho nada a ver com isso. Quando eu disse isso, o Afrânio pediu para eu fazer um seminário. Fiz dois papers. Um, que se chama “O conceito de desenvolvimento do Iseb” e outro, mais interessante, que se chama “Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência”, em que vou fazer a crítica da dependência.

Valor: Isso foi em que ano?
Bresser-Pereira: Foi em 2004. Para fazer esse paper, fui rever as ideias do Fernando Henrique. Eu sabia que ele tinha deixado de ser esquerda, mas eu também tinha deixado um pouco de ser esquerda. Eu continuava um pouco e ele tinha deixado de ser mais do que eu. Mas o que não era claro para mim era a parte nacionalista, a parte de poupança externa, essas coisas.

Aí fui ler outra vez o livro clássico dele e do Enzo Faletto (Dependência e Desenvolvimento na América Latina). E vi que Fernando Henrique estava perfeitamente coerente. O que é a teoria da dependência? É uma teoria que vai se opor à teoria cepalina, ou isebiana, do imperialismo e do desenvolvimentismo, que defende como saída para o desenvolvimento uma revolução nacional, associando empresários, trabalhadores e governo, para fazer a revolução capitalista. O socialismo ficava para depois.

A teoria da dependência foi criada pelo André Gunther Frank, um notável marxista alemão que estudou muitos e muitos anos na Bélgica e que em 1965 publicou um pequeno artigo chamado “O desenvolvimento do subdesenvolvimento”, brilhante e radical. É a crítica à teoria da revolução capitalista, à teoria da aliança da esquerda com a burguesia. É a afirmação categórica de que não existia, nunca existiu e nunca existiria burguesia nacional no Brasil ou na América Latina.

No Brasil, os seguidores de Gunther Frank eram o Ruy Mauro Marini e o Teotônio dos Santos, mas no final, e curiosamente, o seguidor deles mais ilustre vai ser o Florestan Fernandes maduro. Eles concordam que não existe burguesia nacional. Quando a burguesia nacional é compradora, entreguista, associada ao imperialismo, a única solução é fazer a revolução socialista. É bem louco, mas é lógico.

Aí vieram o Fernando Henrique e o Enzo Faletto e disseram que havia alternativa, a dependência associada. Ou seja, as multinacionais é que seriam a fonte do desenvolvimento brasileiro, cresceríamos com poupança externa. Era a subordinação ao império. Claro que o império ficou maravilhado. A teoria da dependência foi um grande sucesso — os outros liam e faziam suas interpretações.

Na prática, era uma maravilha: a esquerda americana, que se reúne nas conferências da Latin America Student Association, nos Estados Unidos, encontrava um homem democrático de esquerda que via nos Estados Unidos um grande amigo na luta pela justiça social. Quando fiz essa revisão, estava começando a romper com o PSDB.

Valor: E quando o senhor chegou ao PSDB?
Bresser-Pereira: Em 1988, fui um dos fundadores do PSDB. Na época da fundação, o Montoro não queria o nome de social-democracia para o partido, porque tinha origem na democracia cristã, que a vida inteira tinha lutado contra os social-democratas na Inglaterra, na Alemanha e na Itália. Nós ganhamos, pelo fato de sermos centro-esquerda.

Mas aí ele dizia: “Muito bem, mas e se esse bendito PT, que se diz revolucionário, que tem propostas para a economia brasileira completamente irresponsáveis, chega no poder ou perto do poder e se domestica, e se torna social-democrata, como aconteceu na Europa? Eles têm toda uma integração com os trabalhadores sindicalizados, que nós não temos, então nós vamos ser empurrados para a direita”. E foi isso que aconteceu.

Valor: Quando o senhor considera que o PSDB começa essa trajetória para a direita?
Bresser-Pereira: O Fernando Henrique teve dois azares: o primeiro foi que governou o país no auge absoluto do neoliberalismo, enquanto Lula governou no momento em que o neoliberalismo começa a entrar em crise; e o segundo é que seu governo não gozou do aumento dos preços das commodities de que o Lula desfrutou.

Mas o fato concreto é que no governo Fernando Henrique o partido já caminhava para a direita muito claramente. Daí o PT ganhou a eleição e assumiu uma posição de centro-esquerda, tornou-se o partido social-democrata brasileiro — e o PSDB, naturalmente, continuou sua marcha acelerada para a direita. Nas últimas eleições, ele foi o partido dos ricos. Isso, desde 2006.

É a primeira vez na história do Brasil que nós temos eleições em que é absolutamente nítida a distinção entre a direita e a esquerda, ou seja, entre os pobres e a classe média e os ricos. E um partido desse não me serve, seja pela minha posição social-democrata, seja pela minha posição nacionalista econômica — tenho horror profundo e absoluto do nacionalismo étnico.

Acho que a globalização é uma grande competição em nível mundial, quando todos os mercados se abriram, e passou a haver uma competição global não apenas das empresas, mas dos países. E você precisa, mais do que nunca, uma estratégia nacional de desenvolvimento.

Valor: Retomar a ideia de nação, que ficou meio apagada nos anos 90?
Bresser-Pereira: Isso, retomar a ideia de nação. E a própria ideia de centro-esquerda, que ficou um pouco apagada nesse período. Às vezes me perguntam: “Se você não é mais um membro do PSDB, foram eles que mudaram ou você?”. Fomos os dois. Eles mudaram mais para a direita e eu mudei um pouco mais para a esquerda. Recuperei algumas ideias nacionalistas que achava muito importantes.

Valor: A quem isso serve?
Bresser-Pereira: Isso é muito claro. Eu uso uma frase do Jacques Rancière, sociólogo político francês, de esquerda, sobre o ódio à democracia. A democracia sempre foi uma demanda dos pobres, dos trabalhadores, de classes médias republicanas, nunca foi dos ricos. Os ricos odeiam a democracia, embora digam que defendem. Eles sabem que a democracia não vai expropriá-los, que a ditadura da maioria não vai expropriá-los — mas eles continuam liberais e, se não têm ódio, pelo menos têm medo da democracia.

E qual a melhor forma de neutralizar a democracia? São duas. Uma é fazer campanhas eleitorais muito caras. Então, financiamento público de campanha, jamais. Rico não aceita isso em hipótese alguma. A outra estratégia é desmoralizar os políticos.

Uma coisa clara é que a corrupção existe porque o capitalismo é essencialmente um sistema corrupto e os capitalistas estão permanentemente corrompendo o setor público. É fácil verificar quem são os servidores públicos mais corruptos. Quem corrompe professor universitário? Ninguém. E quem corrompe delegado de polícia?

É claro que tem um monte de gente interessada em corromper delegado de polícia, fiscal da Receita. Os fiscais da Receita não são intrinsecamente mais desonestos que os professores. Fizeram concursos mais ou menos igualmente, são pessoas igualmente respeitáveis — só que uns são submetidos a processos de corrupção por parte das empresas; outros, não.

Valor: O que o senhor acha do Bolsa Família?
Bresser-Pereira: Acho uma maravilha. Sempre acreditei piamente na competição. Quando pensava naquela emenda da Revolução Francesa — Liberdade, Igualdade e Fraternidade —, eu entendia perfeitamente as ideias de liberdade e igualdade, mas a fraternidade eu achava simplesmente simpática. Nesses últimos anos, todavia, descobri que é absolutamente fundamental.

Na sociedade em que vivemos, existe uma quantidade muito grande de pessoas cuja capacidade de competir é muito limitada. Mesmo que tenha educação, por características pessoais, geralmente de equilíbrio emocional, às vezes de inteligência, essas pessoas não são capazes de se defender da competição como devem. E aí que entra a fraternidade.

O Bolsa Família é um mecanismo altamente fraterno. O Lula sabe da necessidade da fraternidade, da solidariedade — a vida dele deve ter lhe ensinado. Ele é perfeitamente capaz de competir por conta dele, isso é evidente. Mas sabe a importância da solidariedade.

Da Redação, com informações do Valor Econômico

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